24 julho, 2021

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Resenha :: O Diabo e Outras Histórias


Contos são para mim a melhor forma de conhecer a escrita de alguém. Como testar as águas antes de mergulhar na piscina com uma escrita ou gênero fora da zona de conforto.


 “Três Mortes”: o autor examina como o final da vida pode ser distinto ao descrever a morte de uma velha senhora, de um cocheiro e de uma árvore. 

  

Com a leitura, a constatação do que tínhamos por nivelador dos seres mostra apenas que, mesmo ela (a morte), as diferenças revelam. Dando ao texto, que deveria ser simples, tantas camadas que emocionam, à medida que cada uma é revelada. 

  

Enquanto acompanhamos a luta pela vida da velha senhora, vemos a calma aceitação por parte do cocheiro. Mas não é só na luta pela vida que notamos como cada um age de modo diferente, vemos que o dinheiro muda até mesmo a faceta da morte, porque enquanto a uns o monumento é de grande ostentação, a tentar manter a memória viva de quem partiu, para os menos afortunados é apenas um marco de onde foi depositado o corpo. E por fim a árvore que, de todas as vidas e mortes do texto, foi a que mais me marcou pelo significado.

 

Um mês depois erigiu-se um jazigo de pedra sobre a sepultura da morta. Sobre a do cocheiro ainda não havia nenhuma campa, apenas uma relva verde-clara brotava do montículo de terra, único vestígio de um homem que havia passado pela existência.


 

 Os entraves da civilização e da natureza retornam em Kholstomier, conto sobre um puro-sangue que, para decepção de seu dono, nasceu malhado. 

  

Foi meu conto favorito. É uma lição não apenas de vida, mas de humanidade, mesmo quando fala da falta desta. Confesso que quanto mais eu lia mais me sentia em uma verdadeira aula. Claro que o recurso de escrita, de usar um animal para dar voz a essas lições, além de tornar o texto mais poético, serve também para o exercício de aprendizado mais verdadeiro. 

  

É uma leitura prazerosa, mas longe de ser leve, é densa, cheia de substância, por isso é para ser lida gradualmente, avançando a medida em que assenta seus significados em quem ler. O fato de o autor quase nos convencer que o cavalo está contando a história é um destaque que merece ser feito, porque é de uma perfeição que beira ao absurdo do brilhantismo. 

  

E mostra como nós enquanto seres humanos precisamos urgentemente reaprender a viver, porque entramos em um modo de apenas existir e nessa existência o “ter” se torna o mais importante. Os diálogos entre os humanos no fim da história mostram que a vaidade e o egoísmo são facilmente percebidos nos diálogos.




 

 “O diabo” narra uma história de amor atormentada pelo ciúme. 

 

Nunca eu poderia imaginar que a escalada dos acontecimentos tomaria aquele rumo. Ainda com o coração aos pulos ante o fim, veio a virada e eu que não havia me recuperado fiquei sem fala e completamente cativa dessa história. 

  

Afinal, enquanto tratamos “o diabo” como uma entidade, podemos atribuir-lhe a culpa de nossas falhas, mas quando temos a consciência de que os frutos de nossas ações são de nossa única e exclusiva responsabilidade, temos um entendimento mais significativo de nossas ações e atitudes, incluindo aquelas que fogem a moral e aos costumes. Preciso dizer que, após ler o texto de apoio, esse conto ganha ainda mais força e mais impacto no pós-leitura. 

 

Muitas vezes em seu íntimo se alegrava por essa libertação, e eis que de repente aquele acaso, que parecia insignificante, vinha lhe revelar que não estava livre. Atormentava-se nesse momento não pelo fato de estar outra vez subordinado àquele sentimento, de desejá-la — nem queria pensar nisso —, mas porque o sentimento ainda estava vivo dentro dele, porque era preciso estar em alerta. No íntimo, não havia nem sombra de dúvida de que acabaria por vencê-lo.


 

 “Falso cupom” condensa as ideias do escritor sobre a religião, a utopia e o modo como a fé e o Estado se relacionam. 

  

Um conto poderoso sobre o que hoje é conhecido como "efeito borboleta". De pequeno ato viu-se a frente de si uma enorme sucessão de fatos. E, para mim, uma linda prova de como a verdade liberta. 

  

Algumas passagens, para mim, foram motivo para horas de conversa e reflexão com meu pai, que renderam ótimas discussões a respeito do que é fé, religião e a zona cinzenta que as pessoas criam entre a Bíblia e as regras de prática dos ensinamentos. Dá um certo desânimo perceber que críticas a ações da época dos “czares” ainda sim são tão atuais e facilmente aplicadas ao “estado laico”. 

  

Mas, ainda assim, a atitude de uma pessoa causa uma repercussão tão grande na vida de tantas pessoas, que quando o autor nos mostra que uma ação ruim repercute destruindo, uma ação boa repercute não apenas construindo, mas mudando de forma positiva a vida de muitas pessoas.



 “Depois do baile” traz a produção tardia de Tolstoi em um conto sobre política e moral, entremeado por uma paixão arrebatadora. 

  

Quem realmente somos entre os discursos e ações?  O quanto uma ação desmente uma fala ou uma atitude antagoniza com outra atitude igualmente nossa? Em um baile, a “persona” social de uma mesma pessoa que, em um momento posterior, aplica um espancamento bárbaro de um soldado desertor com finalidade disciplinadora. O qual retira todo o encantamento de outra, quando impressionou de forma positiva ao dançar uma valsa com a filha. Essa dualidade de atitudes não é apenas colocada em primeiro plano, assim como “tudo ser uma questão do acaso”. 

 

Pois bem, vocês dizem que o homem não pode compreender por si só o que é bom, o que é mau, que tudo depende do meio, que o meio devora tudo. Eu, porém, penso que tudo depende do acaso.

 

Lindo, denso e atemporal, um encerramento deslumbrante. O posfácio é rico e uma adição a obra.





Informações Técnicas do livro

O Diabo e Outras Histórias 

Liev Tolstói 

Tradução: Beatriz Morabito, Beatriz Ricci e Mayra Pinto 

Ano: 2020  

Páginas: 192 

Editora: Companhia das Letras 

Sinopse: 

Escritos entre 1858 e 1904, os cinco contos aqui reunidos são pequenas obras-primas do autor de Guerra e paz. 

Três mortes, Kholstomier, O diabo, Falso cupom e Depois do baile sintetizam, com maestria, os temas presentes na vasta produção do autor de Anna Kariênina: paixão, ciúme, morte, traição, consciência moral, decadência da aristocracia, vida no campo e dilemas da justiça. 

Em Três mortes, o autor examina como o final da vida pode ser distinto ao descrever a morte de uma velha senhora, de um cocheiro e de uma árvore. Os entraves da civilização e da natureza retornam em Kholstomier, conto sobre um puro-sangue que, para decepção de seu dono, nasceu malhado. Publicado postumamente, O diabo narra uma história de amor atormentada pelo ciúme, enquanto Falso cupom condensa as ideias do escritor sobre a religião, a utopia e o modo como a fé e o Estado se relacionam. Depois do baile, por fim, traz a produção tardia de Tolstói em um conto sobre política e moral, entremeado por uma paixão arrebatadora. 

  

Posfácio de Paulo Bezerra. 


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