26 outubro, 2021

# @efinco # Ciências Sociais

Resenha :: Complexo de vira-lata: Análise da humilhação colonial



O complexo do vira-lata é um termo que tem uma proximidade muito grande com várias questões e realmente fiquei curiosa em como a autora abordaria essa questão e não poderia ter tido uma surpresa mais positiva. E agora vou compartilhar um pouco da minha leitura.

  

Com uma narrativa em primeira pessoa, vamos acompanhando a abordagem completa, porém, simplificada, que visa não tanto o ensino, mas, no meu modo de ver, o de fazer pensar. E um pensar que vem através do entendimento que não estamos precisando pensar algo novo, mas que vem de muito antes de o Brasil existir enquanto país e nós como povo brasileiro. 

  

Achei a ideia excelente. O livro funciona como um guia de diálogo, a cada capítulo vale a reflexão, o pensamento, a interiorização das conclusões e, muitas vezes, de forma intuitiva nos direciona para a próxima questão, que vemos colocada tão habilmente no próximo capítulo. Assim a reflexão vem pouco a pouco, mas de forma acumulativa e de perfeito entendimento.



Em todo o texto vemos a exposição da lógica, qual a moral, a estética e a política da humilhação. Que foi interiorizada pelos brasileiros desde a colonização ao nível social e político, assim algo presente e não apenas do passado. O fator de não ser algo novo assim requerer uma carga maior de pensar, entender e querer mudar, também foi brilhantemente exposta com a história sendo contada para entender os dias atuais e porque é tão difícil a mudança de algo que, há mais de 500 anos, vem sendo constante e incansavelmente interiorizado.

  

Na origem das Américas e da condição indígena está esse erro e essa violência epistemológica que foi mundialmente naturalizada. Vivemos, desde então, o paradoxo de sermos definidos por palavras que não nos representam.

 

A construção do tema vem em dois grandes momentos: a humilhação e a colonização, e o complexo de vira-lata e complexo de Colombo. Que tem seu papel de “herói”, enquanto desbravador, colocado a luz da história, não do ponto de vista do colonizador, mas do colonizado. Trabalhando os temas a partir do concreto, fazendo não apenas o pensamento figurar no modo abstrato, mas criando uma imagem definida dos fatos e dos exemplos enquanto a leitura acontece. 

  

Com uma narrativa deliciosa, um pouco como uma palestra ou aula da qual você gostaria realmente de participar e até interagir. A estrutura da narrativa tornou a leitura deliciosa e muito fluida, sendo possível ler em poucos dias, porque requer mais tempo de análise do que propriamente de leitura. Sem em momento algum se tornar cansativa, ao contrário. Achei cada capítulo um tema delicioso para conversa com outras pessoas, que mesmo sem ler conseguiam interagir com as questões por serem tão nossas e tão necessárias, em especial para entender o contexto atual e o ganhar de vozes antes silenciadas. 

  

Durante toda a leitura, eu me lembrei em especial de um versículo da Bíblia que diz: “No princípio era o verbo”. A lembrança vem do chamamento ao poder da palavra. De nomear, e o quanto o nomear, rotular e acabar por definir não apenas um local, um objeto, mas também as pessoas. Afinal o verbo indica uma ação. Termos atuais como cancelamento e naturalização chamam a atenção para a vida que acontece no meio digital. E o quanto podem ocultar processos históricos e sociais pelos quais foram construídas. 

  

A questão que sofremos uma nova categoria de escravização, a digital. Afinal, a condição de usuários das redes sociais, no lugar de termos “entretenimento estamos trabalhando de graça para que as grandes empresas ganhem muito dinheiro”, enquanto criam a ilusão que nós também ganhamos enquanto criadores de conteúdo. O Chamamento é de luta! “Para que o jogo do reconhecimento vença o da humilhação”. Afinal, na cultura da humilhação existe o elogio ao humilhador e ajuda a humilhar a vítima.

 

O caso da escravização é paradigmático, pois o corpo é roubado de sua liberdade, medido e pesado, avaliado como mercadoria e obrigado ao trabalho forçado, a fazer o que não deseja mediante violência física.

 

Contudo, chama a atenção ao grande enraizamento estrutural da humilhação e que isso não a torna insuperável, mas que só funciona porque é conduzida por alguém. Afinal é a categoria de prática pela qual o outro é transformado em nada. E o pior dos exemplos vem da escravidão de seres humanos que, além de tirados de sua terra, perderam o direito de uso da língua pátria, da fé e dos costumes chegando ao ponto de perderem a condição humana, passando a condição de mercadoria. Coisificando para fins econômicos e nadificando através da humilhação seres humanos.



E, para mim, o mais pesado foi perceber que não existe retratação quanto a isso e tantos outros abusos a pessoas e povos. Porque “a humilhação mata algo dentro de quem a sofre ser o primeiro passado para eliminação”, enquanto o assassinato é o último. E enquanto trauma, a humilhação “é uma experiência inapagável”. Mas, em momento algum, justifica que nada seja feito, que o processo de humilhação seja interrompido, que não exista mudança e resistência. 

  

A lógica da intrusão não admite a diferença, ela não admite preservação da vida e nem reparação histórica. As necessidades ecológicas da vida e o tempo histórico são apagados para que a cisão originária permaneça favorecendo uns em detrimento de outros.

 

Então, como eu, você já deve ter percebido que todos somos personagens desse livro, incluindo a natureza do mundo que vivemos, seja a fauna ou a flora. Por que o discurso da humilhação não poupa a nada nem ninguém, enquanto omite o que realmente lhe importa, o poder e o lucro econômico? Mentem em favor do “nosso bem”. E, lendo a resenha, espero que tenha percebido que não é uma questão de dar voz a quem teve sua própria voz tomada. Não! É uma questão de sair da ilusão, da zona de conforto, da caixa, da bolha ou qualquer outro termo que use para dizer que está em um mundo imaginário, que criamos para nós para evitar ver as mazelas da sociedade que vivemos, sendo mantidas e perpetuadas por quem está no poder, para se manter no poder. 

  

Apesar da estrutura filosófica, sociológica e psicológica envolvida na análise feita no livro, a linguagem se mantém de fácil entendimento, sem cair no popularesco ou no catedrático. Existe quase um diálogo não entre autora e quem lê, mas entre o texto e o que há em nós, que se mexe e diz: Hei! Eu passei por isso, eu entendo isso, eu vejo e vivo isso.  

  

Um livro realmente de grande importância e fácil leitura, porém de difícil entendimento, porque são de fatos que não gostamos de colocar a lupa proposta em cima deles para análise. Que trazem uma desconstrução tão importante e necessária, mas até mesmo dolorosa em alguns momentos. Afinal, se cairmos na ideia errônea de dizer aos afrodescendentes que voltem para o continente África, para onde iria a maioria de nós? 

  

Para um quilombola, para uma comunidade indígena, o espaço é simbólico, refere-se ao pertencimento; para os representantes do capitalismo de qualquer nação, o espaço é apenas mercadoria.

 

Somos um país de miscigenados, de pessoas sem pátria além da que vivem, e isso nos dá muito mais o que pensar ao lermos Complexo de vira-lata, porque mais que em qualquer outro país do mundo, o Brasil é uma pátria dos sem raça definida, que a linhagem remota a todos os lugares e assim sem lugar algum. Que tem no habitante antes do processo de colônia, em sua linhagem familiar, o direito de moradia em terras brasileiras. E só isso já nos daria muito o que pensar, mas para o sistema pensar é perigoso.



Então se você quer se entender como brasileiro, porque essa é a sua terra, e o seu local de pertencimento, fica o convite à leitura desse livro, à conversa sobre ele e o desejo de uma ótima leitura. 

  

Sobre a edição, me chamou a atenção o tamanho de bolso do livro, o que facilita o transporte, mas que me lembra a questão dos “pequenos frascos e valiosos conteúdos”. Com ótima impressão, papel pólen e diagramação e fonte confortável para leitura, excelentes notas de rodapé e imagens, capa com relevo nos títulos. Posso dizer que é uma edição realmente muito bonita e elaborada. Enfim, um deleite na leitura.




Informações Técnicas do livro

Complexo de vira-lata: Análise da humilhação colonial 

Marcia Tiburi 

Ano: 2021 

Páginas: 196 

Editora: Civilização Brasileira 

Sinopse:

Em novo livro, a filósofa e feminista Marcia Tiburi investiga a humilhação nacional. 

Complexo de vira-lata é o mais novo livro de Marcia, Tiburi, filósofa e feminista, autora dos best-sellers Como conversar com um fascista e Feminismo em comum. Foi escrito com linguagem acessível como um processo de busca pela verdade em tempos nos quais o manifesto ódio à verdade vem destruir as chances de se construir uma comunidade humana. 

Conciso, nasce na urgência de uma análise sobre a humilhação nacional, interiorizada pelas pessoas e institucionalizada em nível social e político por meio da colonização, que não é apenas coisa do passado. A tese fundamental desta obra é que a humilhação é uma práxis, ou seja, uma ação que é, ao mesmo tempo, uma produção mental, teórica e linguística, emocional e afetiva. É ela que sustenta a guerra de classes dos ricos contra os pobres e explica a submissão e a obediência de todos diante das injustiças até hoje. 

Complexo de vira-lata busca expor a lógica, a moral, a estética e a política da humilhação em forma de uma constelação. Revela tanto o método da análise filosófica em jogo, suas bases interdisciplinares ligadas à psicanálise, à história, à literatura e outras áreas, quanto conteúdos e efeitos dessa configuração essencial do psicopoder, ao qual inimigos da democracia tentam submeter seus defensores. 

Se todo livro é uma conversa, esta é uma obra imperdível, essencial para a biblioteca de todas as pessoas que desejam aguçar o pensamento crítico.



Para comprar:

 Livro Físico

 E-book




Conheça mais sobre o Grupo Editorial Record
em seu site e redes sociais:

Site │ Instagram │ Facebook │ Twitter

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por seu comentário!! Bem-vindo(a) ao Clube do Farol!