Olá, faroleiros. Hoje venho falar de uma leitura que mexe com o todo, com o início e o caminhar de todas as coisas, e pensa a partir e para o feminino. E não estou falando da mulher hétero, cis, branca. As citações optei por deixar aqui apenas as primeiras para não incorrer no risco de deixar alguma descontextualizada e comprometer a interpretação, mas aviso que ao ler ter post-its para marcações novas é fundamental.
“No princípio era o verbo”, com esse ponto de partida o livro nos guia sob a abordagem de 12 verbos, onde o convite principal é ressignificar o discurso. E tem seu início não em Falar, mas sim em Ouvir. Tirar o foco de si e colocar o holofote sobre quem não tem “voz”, não tem seu espaço de fala respeitado ou completamente usurpada pelo patriarcado. A narrativa se alterna entre Debora Diniz e Ivone Gebara, cada uma trazendo sua contribuição do mesmo verbo sob óticas e perspectivas distintas nessa construção de um verbiário feminista por uma feminista laica e outra religiosa.
Falar de feminismo para uma mulher (englobando a todas que são e se identificam como) é, de certo modo, fazer o local comum (de vivência de cada uma) torna-se um lugar completamente novo e até estranho, desconhecido. Isso porque tantas agressões e violências são normalizadas pela sociedade, onde o homem é o dono da narrativa, que é preciso um distanciamento para só então depois haver o entendimento e a compreensão do que se passou e que não foi de forma alguma “normal”.
Eram momentos em que parávamos para contemplar os verbos, essa unidade das normas gramaticais que torna uma oração completa e faz uma expressão provisória da existência.
Cada autora traz sua linguagem e forma de narrativa ao texto, o transformando em algo não linear e deixando a leitura mais dinâmica, viva. Pouco tempo após iniciar a leitura, já é possível, sem ler o nome no início da página, saber quem escreveu o texto, o que achei por si só maravilhoso. E não se engane, não é um livro sobre tristezas, dores e direitos negados, como o título revela, é sobre esperança, sobre como é necessário ao projeto intelectual feminista criar aproximações éticas, amorosas e de cumplicidade entre nós.
Que apesar das dificuldades, a possibilidade do êxito nas mudanças é real, possível! Como mostra esse encontro de mundos tão distintos entre o laico e religioso, em um convite uníssono para continuarmos a luta, unidas, abraçando as diversidades e as releituras, sem deixar nenhuma para trás, sem soltar a mão de ninguém. Transformando o pensamento em ação conjugada, em amor, acolhimento, sororidade e solidariedade, primeiramente o saber ouvir antes do agir. Abrindo o horizonte para, juntas, reclamarmos o reconhecimento de nossas vivências, necessidades e direitos.
Há que sair do mutismo de muitas dores e do medo das muitas repressões, par a que ouçam a nossa voz e ouçamos a voz uma das outras.
Gostei muito da abordagem tão plural e atual das questões, mesmo sendo eu radicalmente contra algumas falas das autoras. Eu não acredito que a “demonização” da religião e das igrejas tenha feito qualquer bem à sociedade e às mulheres, para mim todos perderam, porque para se extirpar a doença se buscou matar o doente. E comento isso para entender que esse é um livro onde se é impossível a leitura sem entrar em um debate com o texto e a, cada nova argumentação, se ver envolta em um diálogo que faz como que ao ler você experimente a proposta e se veja fora do lugar-comum e passe a olhar com uma visão de “3ª pessoa”.
A esperança feminista não pode temer a diversidade, e se falamos em feminismo no plural é a prova de que encontros entre territórios de pronuncia são necessários e possíveis.
À medida que a leitura avança, cada leitora se torna personagem do livro, e também uma das muitas histórias retratadas, porque o pensamento sobre, comigo, foi assim, permeia a leitura e dá o pertencimento como principal ligação entre o texto e quem lê. A busca se torna entender como nós, mulheres, hoje maioria da população, temos a minoria comandando nossas vidas e nos faz lutar por coisas básicas como a não violação de nossos corpos, não sermos mortas por sermos mulheres e não sermos obrigadas a viver relacionamentos abusivos dos quais queremos sair por medo. E assim deixa de ser uma história sobre aquela mulher, ou aquela situação e passa a ser um livro sobre todas nós. Este com certeza não é um livro sobre teorias e sim sobre realidade pesquisada, examinada, vivida, ouvida, imaginada e de esperança.
O livro em si é uma obra-prima em sua diagramação, encadernação, impressão, papel e a diagramação é perfeita! As páginas em cinza fazendo a divisão dos verbos, as notas de rodapé e referências são primorosas, um verdadeiro deleite ter essa edição em mãos.
Esperança feminista
Debora Diniz e Ivone Gebara
Ano: 2022
Páginas: 280
Editora: Rosa dos Tempos
Sinopse:
Debora Diniz e Ivone Gebara – dois grandes nomes do feminismo brasileiro – se encontram para pensar a esperança feminista.
Em Esperança feminista, Debora Diniz e Ivone Gebara – duas das principais vozes do feminismo brasileiro – se encontram para pensar a ação feminista a partir de doze verbos políticos e poéticos.
Professora universitária, Debora Diniz é conhecida amplamente pela sua atuação para garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, incluindo a descriminalização do aborto. Pela reação de extermistas à sua atuação, foi obrigada a se autoexilar em 2018. Recebeu mais de cem prêmios, entre eles o prestigioso Dan David, pelo trabalho acadêmico em igualdade de gênero, e foi indicada pela importante revista Foreign Policy um dos cem pensadores globais de 2016.
Ivone Gebara é uma freira católica ecofeminista que, devido à teologia crítica que fazia – e faz – e à sua postura sobre a descriminalização do aborto, foi proibida pelo Vaticano, durante vários anos, de falar em público e divulgar suas ideias. O enfoque que dá a valores como autonomia e liberdade da mulher, que tradicionalmente são negados pela Igreja católica, faz com que seja inspiração para grupos feministas, como o importante Católicas pelo Direito de Decidir.
Em comum, as autoras trazem o estranhanhamento de uma conjugação patriarcal naturalizada, a celebração da alegria feminista e uma vida de desobediência criativa ao patriarcado e suas tramas.
“Quem lê Esperança feminista percebe como é necessário ao projeto intelectual feminista criar aproximações éticas, amorosas e de cumplicidade entre nós. A identidade do feminismo pode ser capaz de reafirmar um ponto de vista dissonante ao extermínio dos direitos humanos, ao sequestro de nossa autoria e inclinado ao reposicionamento de nossa identidade.” – Do texto de orelha, de Carla Akotirene
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