E mesmo uma gaiola dourada continuava sendo uma gaiola.
Esses dias estive pensando que eu estava exigente demais com os livros, fazia um bom tempo que não tinha vontade de dar 5 estrelas para as minhas leituras, mesmo as que eu gostei verdadeiramente, mas parecia que sim, eram muito boas, porém deixava um sentimento que faltava algo. Talvez o problema fosse eu buscando um sentimento de certeza que eram comuns em mim tempos atrás, quando estava começando no mundo da leitura e era facilmente encantada, quando certas fórmulas literárias eram novidades para mim, o que é normal não voltar a se sentir assim, afinal não sou a mesma leitora. Bom, até eu ler Babel.
De todas as maravilhas de Oxford, Babel era a mais inacreditável — uma torre fora do tempo, a visão de um sonho.
Babel tem como ambientação principal a universidade de Oxford, em uma Inglaterra da década de 1830, tendo como protagonista o jovem Robin Swift. Nascido em Cantão, na China colonial, se torna órfão por conta da Cólera em 1828, e é levado para Londres por um misterioso professor que entra em sua vida e o prepara no estudo de idiomas, para que ele possa entrar no Real Instituto de Tradução de Oxford.
A torre está intrinsecamente ligada ao negócio do colonialismo. Ela é o negócio do colonialismo. (...) Tudo que Babel faz está a serviço da expansão do Império.
Nesse universo aprender a traduzir é também aprender usar a magia por meio da Prata, que são uma espécie de barras mágicas encantadas com palavras equivalentes em idiomas distintos, usadas com diversos objetivos, desde facilitar que um navio navegue mais rápido, uma estrutura arquitetônica se mantenha em pé, ou simplesmente que flores aparentem ter uma aparência mais vívida, que a comida não esfrie rapidamente, e máquinas simples durem por mais tempo, é uma tecnologia poderosa que garante a Grã-Bretanha um poder colonizador poderoso em diversos países, e Babel é o centro principal desse saber.
Odiava aquele lugar. Amava aquele lugar. Ficava magoado pela maneira como era tratado. Ainda queria ser parte daquilo.
Através da tradução e estudo da etimologia de palavras, Babel garante que estudantes de várias partes do mundo se dediquem a esse estudo de idiomas para que criem tecnologias úteis para o país. O jovem chinês Robin, ao entrar em Oxford, se encanta pelas oportunidades de estudo, de ter tantos livros ao seu alcance, mas se vê dividido quanto mais descobre os desdobramentos do uso da Prata que beneficia apenas um grupo, de como os brancos, mesmo aqueles que aparentam gostar de pessoas não brancas, olham para os estrangeiros de forma racista e xenofóbica, e como os consideram menos humanos, e admirem apenas suas utilidades.
Por que não haviam parado para questionar suas diferenças de origem, de criação, e como isso significava que não estavam e nunca poderiam estar do mesmo lado?
O grupo de amigos de Robin é formado por Ramy, indiano nascido em Calcutá, Victoire, uma garota negra do Haiti, e Letty, a única pessoa branca do grupo, nascida e criada na Inglaterra. Com eles nos são apresentados os diversos tipos de opressões que sofrem, ainda mais estando em um país que não é o deles (no caso dos três primeiros), de gênero e raça. Mas, além disso, é muito bem desenvolvido a amizade deles, e como pessoas tão diferentes acabam se amando e tendo atritos, pois as vezes o amor não é suficiente em um contexto que os ferem de tantas formas.
E Robin achava incrível como aquele país, cujos cidadãos se orgulhavam tanto de ser melhores do que o resto do mundo, não conseguia tomar um chá da tarde sem usar algo emprestado.
Babel foi um dos livros mais inteligentes que eu li, a ideia da linguística/tradução como fonte de poder, de trabalhar com a delicadeza e referências brilhantes de etimologias das palavras e sua história, cada nota de rodapé que acrescentava informações riquíssimas para o conhecimento da história que estávamos lendo, ou o contexto histórico do que se passava e origem da palavra, tudo isso em uma leitura fluida e uma história que nos prende e encanta absurdamente.
Não é certo vocês recrutarem estudantes de outros países para trabalhar em seu centro de tradução e a terra natal deles não receber nada em troca.
Reunindo fatos históricos, como a Revolução Industrial na Inglaterra e a história colonial da China, a guerra do ópio, a geopolítica e toda uma política de colonização de diversos países, com o incremento fantástico da Prata e sua importância para a opressão de continentes inteiros. É brilhante de uma forma que dói, porque não dá para separar da realidade, a “Prata” poderia ser trocada por qualquer matéria prima que os países colonizados exploraram até o esgotamento, deixando uma cadeia de destruição na história, não tem como não sentir raiva lendo, uma desolação de pensar: o que pode ser feito contra essa estrutura?
— Céus, Robin, ela era só uma china.
— E eu sou só um china, professor. E também sou filho dela.
Ainda com personagens complexos que não eram bons, mas nem de todo ruins, que tomavam decisões equivocadas, mas justificadas, a amizade tão forte e devastadora que guiava os andamentos dos acontecimentos não apenas do grupo de Robin, mas do futuro em relação a sociedade da época.
Eu ainda nem tinha terminado o livro, mas já tinha certeza de que seria favoritado, seja qual fosse o final. Obviamente eu indico muito para quem gosta do gênero, é algo que não podem deixar de ler. Terminei completamente desorientada e com uma certeza de que lerei mais livros da autora, espero que vocês também.
Não me peça para amar o meu senhor.
Informações Técnicas do livro
Babel ou a necessidade de violência
Uma história arcana da revolução dos tradutores de Oxford
R.F. Kuang
Título Original: Babel: Or the Necessity of Violence
Tradução: Marina Vargas
Ano: 2024
Páginas: 592
Editora: Intrínseca
Sinopse:
Da autora da aclamada trilogia A Guerra da Papoula e vencedora dos prêmios Nebula e Locus, a obra é uma trama avassaladora e brilhante sobre a magia da linguagem e o uso das palavras como instrumento de poder.
Em 1828, um menino se torna órfão pelo rastro do cólera em Cantão, na China. Sob o nome de Robin Swift, ele é levado a Londres pelo misterioso professor Lovell e por anos se dedica ao estudo de diversos idiomas, como latim e grego antigo, preparando-se para um dia ingressar no prestigiado Real Instituto de Tradução da Universidade de Oxford, conhecido como Babel.
Com sua torre imponente que guarda segredos inimagináveis, Babel é o centro mundial do saber. No Instituto, Robin descobre que aprender a traduzir é também aprender a dominar a magia. Através de barras de prata encantadas, é possível manifestar as nuances e os significados perdidos na tradução — e essa arte trouxe aos britânicos uma dominância sem precedentes. Para Robin, Babel é uma utopia dedicada à busca do conhecimento. Mas o conhecimento obedece ao poder…
Chinês criado na Grã-Bretanha, o jovem começa a se questionar se servir a Babel significa trair sua pátria e se vê dividido entre a Instituição e uma obscura organização destinada a impedir a expansão colonialista. Quando a Grã-Bretanha vislumbra entrar em guerra com a China motivada por prata e ópio, Robin vai precisar escolher um lado. Afinal, será possível mudar as instituições por dentro ou a violência é inerente à revolução?
Em uma narrativa brilhante, visceral e sombria, R.F. Kuang — autora da aclamada trilogia A Guerra da Papoula e um dos maiores nomes da fantasia atualmente — revisita e reescreve a Revolução Industrial na Inglaterra e a história colonial da China na década de 1830. Vencedor dos prêmios Nebula e Locus, Babel ou a necessidade de violência é ao mesmo tempo uma carta de amor e uma declaração de guerra, abordando temas como revoluções estudantis, resistência colonial e o uso da linguagem e da tradução como ferramenta dominante do império britânico.
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