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31 outubro, 2018

Resenha :: A Intrusa

outubro 31, 2018 5 Comentários

Não sei você, mas quando eu estava no ensino médio, ao estudar literatura, a minha professora pedia para que lêssemos, a cada dois ou três meses (ou até menos), livros clássicos nacionais (ou até portugueses) do período literário que estivéssemos estudando no bimestre. E por isso conheci obras clássicas de diversos autores nacionais, como Machado de Assis, José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Aluísio Azevedo, Raul Pompeia, Álvares de Azevedo, Gonçalves Dias, Eça de Queirós... entre muitos outros.

Mas entre tantos livros e autores, foram pouquíssimas autoras. Se a minha memória não estiver me enganando, as únicas autoras nacionais que li algo, quando estudava literatura no ensino médio, foram Rachel de Queiroz, Cecília Meirelles e Clarice Lispector. E todas elas nasceram já no século XX. E as autoras do século XIX? Cadê? Pode não parecer, pensando só em autores “famosos”, mas elas existiam e mereciam mais destaque e não serem esquecidas. Uma das autoras nascidas no século XIX é a Julia Lopes de Almeida, autora do livro da resenha de hoje.
A romancista (contista, cronista e teatróloga) Julia Lopes de Almeida nasceu em 1862, no Rio de Janeiro, e desde muito nova tomou gosto pela escrita, porém, por causa das possibilidades limitadas da época, resolveu escrever escondido, mas o segredo não durou muito, e contrariando as expectativas, foi incentivada pelo pai que a inseriu no meio literário, começando a escrever em revistas e jornais, contando até com resenha de livro (só eu que acho que ela poderia ser uma bela blogueira?). Tempos depois disso, publicou contos, crônicas, peças de teatro e romances, ainda no século XIX e também no XX.

No final do século XIX, em 1897, a Julia, junto com o seu marido, Filinto de Almeida (com quem havia se casado aos 25 anos), fez parte das discussões iniciais que deram origem a Academia Brasileira de Letras. Sim! Ela fez parte do grupo que fundou a ABL! E, devido à sua contribuição e ao seu “peso literário” na época, o seu nome até constava na lista feita por Lúcio de Mendonça em “O Estado de S. Paulo”, seis meses antes da fundação da Academia, em que contava com os quarenta nomes que pareciam merecer serem reconhecidos como fundadores da ABL. Maaaaaas, mesmo sendo conhecida como a maior escritora do seu tempo, foi excluída simplesmente por ser mulher, com a sua “vaga” ficando para o seu marido, Filinpo.

E assim seu nome foi apagado da história de algo tão marcante, junto com outras escritoras importantes, pois só admitiram mulheres, em 1977, quando a Rachel de Queiroz foi eleita para uma cadeira. É meio triste e decepcionante, né?! Alguém ser “excluído” de algo em que colaborou desde o princípio, simplesmente por causa do sexo.

Júlia é uma autora magnífica. Não é nenhum favor resgatá-la. Ela é um caso absurdo de escritora que não está no cânone literário por puro machismo. Ela é muito superior à grande maioria dos autores de sua época. Os únicos que se equipararam naquele momento são Aluísio Azevedo e Lima Barreto. (Escritor Luiz Ruffato)

Bom, agora temos que parar de falar dessa autora fascinante (vou deixar algumas dicas de artigos e publicações sobre ela no final da resenha, porque sim), e vamos, finalmente, à resenha de um de seus romances, A Intrusa, publicado em 2016 pela Pedrazul.


As asas do tempo têm forte envergadura; não cansam de voar, mas levam às vezes consigo penas que se não mudam, embora fiquem disfarçadas entre outras que vão nascendo...

Narrado em terceira pessoa, A Intrusa se passa no fim do século XIX, no Rio de Janeiro, em plena Belle Époque. Nele conhecemos o advogado Argemiro, que é viúvo há nove anos, e está querendo melhorar a ordem na sua casa, ou melhor dizendo, diminuir a desordem, e conseguir que a visita de sua filha de onze anos, Glória, que vive com os avós (por quem é mimada), seja possível, e pensando nessas questões decide contratar uma governanta, para colocar ordem na casa e educar e cuidar da sua filha.

Com a ajuda do seu amigo, Padre Assunção, escreve um anúncio em um jornal, mas só uma candidata se apresenta à vaga, a Alice Galba, que na “entrevista” aparece toda coberta e parece não ter boa aparência, mas nada disso é um problema, já que uma condição estranha do Argemiro para contratar a governanta é a de que ele nunca deve vê-la, pois no leito de morte, a sua esposa o fez prometer que nunca se casaria novamente, então prefere evitar a “tentação”.


A Alice aceita e melhora a vida dele 200%. Sua casa se tornou impecável, limpa, com tudo em ordem, com flores, perfumada... A sua filha Glória? Cada dia mais educada e bondosa. E ele realmente nunca vê a sua governanta, apenas sente a sua presença, e se encanta por ela cada vez mais.

E o que me delicia é sentir a alma dessa criatura, que aqui tenho debaixo do meu teto, sem que nunca os meus olhos a vejam nem de relance... Ela se esconde, ao mesmo tempo em que se espalha pela casa toda. É a mulher-violeta, positivamente, não há outra comparação!

Mas quase ninguém acredita que ele nunca a vê, pensam até que ela é sua amante! A sua sogra, uma baronesa, principalmente, no auge de seu ciúme, fica tão convicta que o Argemiro está quase quebrando a promessa que fez a sua filha, que começa a considerar a Alice uma grande inimiga, fazendo de tudo para tentar tirar a governanta da vida de seu genro e de sua neta.

Sujeita-se a exercer um lugar suspeito, aceitando todas as condições que lhe impõem e revela uma sensibilidade rara em todos os atos em que podemos a apreciar... Será ela na verdade a mulher perigosa, não pelo que calcula e inventa, mas pelo que merece?

Enquanto isso, a curiosidade e a admiração de Argemiro pela sua governanta aumenta cada dia mais, e aos pouquinhos um novo sentimento vai de desenvolvendo bem sutilmente. Conseguirá a sogra ciumenta o que tanto deseja? No que resultará esse novo sentimento e a admiração de Argemiro?


É extraordinário. Desde que esta mulher entrou em minha casa eu sou outro homem, muito mais tranquilo e muito mais feliz. Nunca a vejo, mas a sinto; sua alma de moça enche estas salas vazias de juventude e de alegria.

Se você ler esse livro esperando um “romance” que acontece do jeito que estamos acostumados, vai cair do cavalo, porque ele é bem sutil. A autora descreveu muito bem a sociedade em que viveu, com pequenas críticas ao mostrar como agiam algumas pessoas daquela época através de seus personagens.

— Glória casará bem, com um homem que a ame e a respeite. Não faltava mais nada! Minha neta mal casada! Pobre... desprezada... precisando trabalhar para viver... que coisa horrível! 
— O que é horrível, mamãe, não é trabalhar; é não saber trabalhar!

Personagens esses que eu achei bem construídos, com qualidades, defeitos e mistérios. Mistérios que envolvem principalmente a Alice, porque não sabemos praticamente nada dela, só que os outros personagens vão descobrindo. O Argemiro não é do tipo de mocinho que a ficamos suspirando, mas é admirável.

Outros personagens que merecem destaque são a sogra do Argemiro, a baronesa, e o Padre Assunção. A baronesa é do tipo de personagem que pegamos ranço, porque que mulherzinha irritante! Ela é doente de tão apegada à memória da filha, que mesmo morta, ela age como se estivesse presente. O Padre Assunção acho que foi o personagem mais bem construído do livro, também com seus defeitos, qualidades e mistérios.

[...] Ela para mim não é uma mulher, mas uma alma. Não a vejo, não lhe toco, a sua imagem material é para mim tão indiferente como um pedaço de pau ou uma pedra. Para mim, basta-me a sua representação, neste aroma, peculiar dela e que paira sutilmente por toda a minha casa; nesta ordem, que me facilita a vida, e no gosto com que ela embeleza tudo em que toca e em que pousa a vista. É uma educada. Parece-me que ela deve ter estudado à sombra de castanheiros ingleses, entre campos de tulipas e jacintos tão diversa ela me parece ser das outras mulheres.

A escrita da Julia Lopes é muito boa, mas como é um clássico não dá para dizer que flui facilmente como um romance da atualidade, mas a leitura fluiu bem para mim.


O único ponto que não foi totalmente positivo, na minha opinião, foi o final, achei ele meio “corrido”, com a resolução de muitas coisas em pouco tempo e com algumas coisas que eu terminei de ler querendo saber mais. Mas nada que tire o brilho da obra em si.

Como é um clássico nacional, o e-book A Intrusa pode ser adquirido gratuitamente no Domínio Público e na Biblioteca Nacional, mas eu sinceramente indico que a leitura seja feita pela edição da Pedrazul, porque eles adaptaram algumas palavras (sem prejudicar o livro), tornando a leitura mais fácil e prazerosa. Além disso, realmente acho que se todo clássico nacional tivesse capas e edições assim, muitas pessoas parariam de ler clássicos “obrigadas”.


A Intrusa é um livro que veio mostrar a força de uma autora que sofreu certo preconceito no seu tempo e também mostrar que o amor surge das mais inesperadas formas, que nem sempre precisamos de mil palavras ou conhecer a aparência para alguém nos fazer bem, às vezes apenas sentir a presença e zelo é o suficiente.

Nunca a vi, mas a conheço, adivinhei-a; abstraí da personalidade. Ela é o meu conforto; a minha segurança, a minha felicidade.


Nota ::  4,5


Informações Técnicas do livro

A Intrusa
Ano: 2016
Páginas: 232
Editora: Pedrazul
Sinopse:
Um clássico nacional à moda europeia! A história de uma jovem governanta chamada Alice Galba.
Julia Lopes nos transporta para o fim do século XIX. O Rio de Janeiro vivia o auge da cultura cosmopolita, a Belle Époque, marcada por profundas transformações culturais que se traduziam em novos modos de pensar e de viver o cotidiano. Em meio à aristocracia carioca, um rico advogado – viúvo, mas ainda jovem e atraente – era perseguido por mães casamenteiras que desejavam ter um genro abastado e influente. Porém, ele se esquivava resoluto, pois prometera à esposa, no leito de morte, manter sua viuvez. O casamento com a filha de um barão resultou em um fruto: uma garotinha mimada e sem modos, criada pelos avós maternos, cuja avó baronesa fazia-lhe todas as vontades. Infeliz pela má educação da menina, ludibriado por um escravo que usava as suas roupas, fumava os seus charutos, bebia fartamente da adega e ainda inflacionava as contas da casa, ele decide contratar uma governanta. Desconsiderando todas as críticas feitas pelos amigos e pela sogra ciumenta, ele pede ajuda ao padre Assunção, seu amigo de infância, e publica um anúncio num jornal à procura de uma governanta. Atendendo ao anúncio, aparece Alice Galba, que aceita a estranha condição: que o patrão jamais a visse. Quando ele entrava pelo portão, ela se escondia. Dela ele apenas sentia o perfume e sua boa influência no lar e na educação da filha. Suas roupas agora estavam impecáveis, a mesa sempre bem posta e arranjada com esmero, a comida saborosa, os móveis reformados, de forma que começou a desejar ardentemente voltar para sua (agora agradável) moradia. Vez ou outra encontrava um livro aberto, esquecido sobre uma poltrona e, com o passar dos meses, passou a notar a doce presença da alma da moça pelos cômodos do casarão. Alma cujo rosto ele já ansiava ver!

Editora Pedrazul atualmente é a editora que mais se dedica à tradução e à publicação de obras mundialmente consagradas, algumas ainda desconhecidas no mercado editorial brasileiro, como os autores que influenciaram o estilo da mais famosa escritora inglesa de todos os tempos, Jane Austen. Também atua no segmento romance histórico e de época escritos por autores contemporâneos.